Desabam prédios no centro da cidade do México num estrondoso terremoto. Racham pias, os espelhos se partem, água escura irrompe das paredes e tudo começa a afundar. Na rua os carros balançam igual gelatina, começa uma chuva apocalíptica de vidros e depois tijolos, ferro e pó, até que a morte se esconda sob os escombros.
Mas a todo instante nos chegam notícias de que bebês sobreviveram seis
dias sob os destroços, casais resistiram sob os entulhos, e outros, apesar de
desabarem inteiramente com os edifícios, chegaram ao solo intatos.
Então é lícito pensar que, embora muitos pereçam, a ruína nos dá lições
de vida. Pois desabam os casamentos, os negócios, a saúde e os regimes, mas não
se sabe de onde nem por que milagre surgem forças, propiciando o resgate e nos
livrando do total aniquilamento.
Todos já estivemos e estaremos em algum terremoto. Um terremoto é quando
a paisagem nos trai. Um terremoto é quando se quebrou a solidariedade entre o
seu ponto de vista e as coisas. Um terremoto não é só quando o caos
demoniacamente toma conta do cosmos. Um terremoto, eu lhe digo o que é: é a
hora da traição da natureza. Ou da traição também dos homens, se quiserem. Um
terremoto, minha amiga, é quando como agora você está se separando. Você me diz
de soslaio, como que saindo, querendo-e-não-querendo conversar, você vai me
dizendo que seu casamento está desmoronando. Você está embaixo da pele, com a
voz meio sepultada lançando um grito de socorro, e aqui com a equipe de
salvamento lhe posso apenas lançar a frase: a ruína nos dá lições de vida.
Terremoto é a hora da traição do amigo, que invejoso concorre como
inimigo e lança fel onde a amizade era mel, e envenena a rima de seus dias
sendo Caim em vez de Abel.
Por isto, há que afixar conselhos sobre a hora do terremoto. Como nos
abrigos antiatômicos, nas indústrias do perigo, há que adiantar as medidas a
serem tomadas quando o terremoto vier. Daí o primeiro conselho em caso de tal
tragédia: não entre em pânico acima do tolerável. Lembre que todo terremoto é
passageiro. Porque este é o sortilégio dos terremotos: nenhum terremoto é
permanente, embora muitos e tanta coisa nele pereçam para sempre. Mesmo os mais
profundos e autênticos cataclismos não duram mais que pouquíssimos, embora
diabólicos, minutos. Vai ser terrível, mas vai passar.
Outro conselho: embora rápido e fulminante, nada garante que ele não
torne a se repetir. Há que estar atento também para o fato de que esse
movimento de terra é interior e exterior. O que desabou por cima não é tudo. É
sintoma apenas do que se moveu por baixo. Naqueles terremotos do México, depois
do primeiro e do segundo, as agências noticiaram um outro, mas que foi apenas
subterrâneo. Diziam: é a acomodação das camadas geológicas. Incômoda acomodação
é essa. Mas um terremoto autêntico vem mesmo das profundas e a superfície só
vai se acalmar quando as camadas geológicas lá dentro se ajeitarem de novo.
Sobretudo, depois do terremoto há que aprender com as ruínas. Por que os
engenheiros que me perdoem, mas a ruína é fundamental. É a hora do retorno. E
se vocês me permitissem discretamente citar Heidegger, com ele eu diria que a
ruína só é negativa para aquele que não entende a necessidade da demolição.
Pois a tarefa do homem é refazer-se a partir de suas ruínas. Temos mais é que
catar os cacos do caos, catar os cacos da casa, catar os cacos do país. Depois
da demolição das fraudes, desmontando a aparência do ontem, poderemos nos
erguer na luminosidade do ser. Ruína, neste sentido, não é decadência. Ao
contrário: é a hipótese do soerguimento.
As ruínas do presente nos ensinam que um terremoto é quando não há mais
o centro das coisas. E no México foi o centro, o centro do centro ¾ a capital,
que foi arrasada. Mas aprendendo com a ruína, ali já nos prometem o verde. Já
tracejam planos de jardins onde crianças e flores povoarão o amanhã.
Amigo, amiga: terremotos ocorrem sempre e muitos aí perecem. Mas a função do sobrevivente é sobreviver reconstruindo.
A ruína, além da morte, nos dá lições de vida.
Affonso Romano de Sant'Anna. Porta de colégio e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1995.
Amigo, amiga: terremotos ocorrem sempre e muitos aí perecem. Mas a função do sobrevivente é sobreviver reconstruindo.
A ruína, além da morte, nos dá lições de vida.
Affonso Romano de Sant'Anna. Porta de colégio e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1995.
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